Há alguns dias, a atriz americana Marcia Cross, a Bree da série Desperate Housewives, foi ao programa matinal da rede CBS para falar do tratamento de um câncer anal, agora em remissão. O câncer foi causado pelo papilomavírus humano, mais conhecido como HPV. Dez anos atrás, seu marido, Tom Mahoney, desenvolveu câncer de garganta, também por via sexual, também causado pelo HPV. Marcia Cross não foi fazer drama na TV, foi alertar para a importância da vacinação contra o HPV. Faça as contas: uma única vacina e você garante que seus filhos estarão protegidos, vida afora, contra quatro tipos de câncer e, de quebra, contra as verrugas genitais.
Os australianos, que começaram a vacinar em massa seus pré-adolescentes assim que a vacina foi lança uns dez anos atrás, já estão planejando a erradicação das verrugas genitais, do câncer de colo de útero e de pênis para a próxima década. Esta semana também foi a vez de o Centro de Controle de Doenças Infecciosas (CDC) de Atlanta divulgar pesquisa comparando a incidência de infecções por HPV em mulheres antes e depois do lançamento da vacina, em 2006. Na faixa mais jovem, dos 14 aos 19 anos, esse índice caiu de 11,5% para 4,3%; na dos 20 a 24 anos, de 18,5% para 12,1%. Importante lembrar que nos EUA praticamente não existe saúde pública, e as vacinas são caras e não obrigatórias. O CDC vai pesquisar também a incidência das infecções de HPV em homens, comparando taxas antes e depois da vacina, e também a incidência de câncer de garganta.
Por aqui, houve projeto para vacinação nas escolas, que foi suspenso por causa de alguns casos de efeitos neurológicos em várias meninas de uma mesma escola, evento alardeado pela imprensa. A vacina está disponível nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) para meninos e meninas, mas menos de 50% do público alvo foi imunizado. Por quê? Em primeiro lugar, porque muitos pais, notadamente os conservadores, veem na vacina algo que pode antecipar o início da vida sexual. Não há nenhuma pesquisa que corrobore essa suspeita e, a bem da verdade, crianças crescem e um dia iniciam sua vida sexual, com ou sem vacina.
Melhor, então, que comecem com a vacina. Segundo, e isso é importante, a idade para a imunização é justamente aquela em que, encerrado o calendário das vacinas infantis, esses jovens não estão mais sob os cuidados de um pediatra. Claro, num mundo ideal, eles deveriam passar a ser atendidos por um hebiatra, o médico de adolescentes, e, depois por um clínico de adultos.
Vacina pra gente grande
Mas, adivinhe? Médicos de adultos não aprendem nada sobre vacinas nos oito anos de faculdade. Conhecimento sobre vacinas é quase que uma exclusividade de pediatras e infectologistas. O seu cardiologista não pergunta se você está em dia com a vacina contra gripe e pneumonia, seu clínico geral não pergunta quando foi a última vez que você tomou vacina contra o tétano (ela tem de ser refeita de dez em dez anos) e seu gastro não fazia ideia se você deveria tomar ou não a vacina contra a febre amarela, no meio do surto. E vamos combinar que existe uma quantidade considerável de ginecologistas que tropeça feio no calendário de vacinação das grávidas.
Claro, existe uma explicação histórica para isso. Crianças sempre foram o foco principal das campanhas de vacinação, até porque durante décadas a base da nossa pirâmide populacional mostrava um enorme número de jovens e crianças e o País demorou a perceber que estava envelhecendo. Países do chamado Primeiro Mundo fizeram mudanças, inclusive no currículo das faculdades de Medicina, à medida que novas vacinas, voltadas para adultos, começaram a aparecer. Aqui, não.
“Culturalmente, nossa preocupação maior sempre foi a das doenças infecciosas e das crianças, por serem mais vulneráveis. A atenção com outras faixas de idade é tardia,” diz o pediatra Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). “E quando percebemos o envelhecimento da população e a substituição das doenças infecciosas pelas doenças crônicas é que temos os idosos também no grupo dos vulneráveis. Mas os adultos ainda não passaram por essa mudança cultural, a de entenderem que existe um calendário de vacinação ao longo da vida e que é importante que sejam imunizados.”
De acordo com ele, é necessário mudar o currículo das faculdades de Medicina para que todos os profissionais médicos aprendam sobre vacinas e, principalmente, sensibilizar os médicos de outras especialidades, sobretudo clínicos gerais e médicos comunitários. “O papel da mídia é fundamental, tanto para sensibilizar os médicos, como para que a população pressione médicos e governos para que essas vacinas estejam disponíveis,” diz.
Basta tomar como a exemplo a mais recente campanha de vacinação contra a gripe. Foram destinadas 63 milhões de doses para os públicos-alvo, entre eles idosos, crianças e portadores de doenças crômicas como diabetes. De graça. E sobraram 14 milhões. Significa que 14 milhões de brasileiros que precisavam tomar a vacina não foram às UBSs para se proteger dos novos vírus, que já mataram 199 pessoas no País este ano. Cansei de ouvir gente falar que não toma vacina porque não funciona (sou diabética, tomo vacina desde 1996 e nunca mais tive gripe, só um ou outro resfriadinho, sem febre) ou porque acham que gripe é coisa à toa e que vale ficar oito dias sem ir trabalhar… Para ficar em casa com febre, dor no corpo, se sentindo um lixo? Ah, prefiro vacina.
Vejam o caso das grávidas. Gestantes precisam tomar as doses de vacinas contra tétano, difteria, coqueluche, hepatite B e gripe. Em situações especiais, essa lista pode aumentar e incluir a pneumocócica, meningocócicas, hepatite A e febre amarela, segundo a SBIm.
A Sociedade Brasileira de Imunizações chegou a lançar campanha para informar médicos e postos de saúde da necessidade de vacinação das grávidas, não apenas pela saúde da mãe, como pela do bebê. Bebês não podem tomar todas as vacinas de que precisam nos primeiros meses de vida, porque seu sistema imunológico ainda está amadurecendo. A proteção que têm é a dos anticorpos produzidos pela mãe vacinada, que os transmite ao filho pela amamentação.
No auge do surto de febre amarela, um site exclusivamente voltado para médicos abriu espaço para que eles relatassem as principais dúvidas sobre a vacina que ouviam de seus pacientes. Em vez de dúvidas dos pacientes, porém, eles enviaram as próprias dúvidas, absolutamente idênticas às da população leiga. “Quem sabe de vacina é pediatra”, reconhece Lessandra Michelin, infectologista, com especialização em vacinologia.
“As pessoas só recorrem a um infectologista para saber se podem ou não ser vacinadas quando se trata de situações graves e especiais, como pessoas que passaram ou estão passando por quimio ou radioterapia, imunossuprimidos, pacientes transplantados ou que têm alergias,” aponta. “Ninguém vem ao consultório só para perguntar se deve ou não se vacinar contra o sarampo.” A lista de vacinas indicadas pela SBIm para adultos inclui 12 imunizações.
Luta constante
O biólogo evolucionista Jared Diamond, ganhador do Prêmio Pulitzer pelo seu livro “Armas, Germes e Aço”, afirma que a história da nossa espécie é a de nossa luta incessante contra vírus e bactérias. Basta lembrar que uma bactéria, a Yersinia pestis, matou um terço da população da Europa. Só entre 1347 e 1351, vinte e cinco milhões de europeus morreram de peste bubônica, incluindo metade da população de Londres, cerca de 100 mil almas. Yersinia devastou a população, provocou mudanças drásticas na economia, no sistema político e nas artes.
Se hoje temos países onde a expectativa de vida supera os 80 anos, é porque vivemos com o tripé esgoto, vacinas e antibióticos. Por isso, segundo especialistas, ninguém em toda história do Homo sapiens salvou mais vidas que o britânico Edward Jenner, o criador da primeira vacina, contra a varíola, doença hoje erradicada do planeta. Jenner percebeu que as moças que ordenhavam vacas e contraíam a forma bovina da doença não contraíam a versão humana da varíola. No dia 14 de maio de 1796, Jenner arranhou as bolhas de Sarah Nelmes, que tinha contraído a forma bovina da doença, e inoculou o pus no menino James Phipps, com sucesso. A aceitação do processo não foi fácil, mas o tempo mostrou que vacinas são eficazes, seguras e custo-efetivas.
Fraude
Isso até que outro britânico, o gastroenterologista (mais tarde cassado e proibido de clinicar) Andrew Wakefield se tornar uma sensação na mídia, com um estudo fraudulento.
Em fevereiro de 1998, depois de enganar os editores da prestigiada revista Lancet com seu estudo de dados falsificados, Wakefield deu uma entrevista dizendo ter encontrado evidências que a vacina tríplice sarampo-caxumba-rubéola (MMR) causava grave inflamação intestinal, que essa inflamação liberava “toxinas” no sangue, toxinas matavam neurônios, causando autismo. Das 12 crianças estudadas, 9 tinham desenvolvido autismo.
Wakefield foi manchete dos jornais de todo o mundo no dia seguinte. Investigações depois mostraram que o estudo era uma farsa, e que o único objetivo do autor era ganhar dinheiro, tanto lançando uma vacina alternativa, como por meio de comissões que advogados pagariam para processar indústrias farmacêuticas. Wakefield perdeu a reputação e a carteirinha de médico, mas o estrago já estava feito.
Doenças de volta
O crescimento dos grupos que temem vacinas e fazem campanhas para combatê-las, particularmente, em redes sociais, levou ao reaparecimento de surtos de sarampo, doença que estava em vias de ser erradicada. Nos EUA foram registrados surtos em parques temáticos da Disney, na Califórnia, e mais recentemente em Nova York. Na Europa, houve surtos na França, Itália e Romênia.
No Brasil, o sarampo retorna pelo contato com refugiados da Venezuela, mas com um detalhe. A chegada dos refugiados e do vírus só deixou clara a baixa cobertura vacinal no País, menos pela influência dos ativistas antivacina e muito mais pela falta de memória do que representam as doenças infecciosas.
Ideias erradas
Para muitos especialistas, a negligência da população com o calendário de vacinas, tanto de crianças quanto de adultos, tem muito a ver com a mentalidade das novas gerações, protegidíssimas por vacinas, e que nunca viram de perto os estragos e os sofrimentos que essas doenças causam.
Conheço jovens adultos na faixa dos 30 anos que adoram fazer trilhas e acampar em praias próximas a matas, mas não tomam vacina contra a febre amarela porque acham que “são imunes”, num “raciocínio” típico de adolescentes.
A cidade de São Paulo registrou um pequeno surto de hepatite A no ano passado. Você sabe que existe vacina contra hepatite A? Contra hepatite B?
E a vacina de febre amarela? Deixou para tomar quando as filas acabassem e acabou esquecendo? Passou dos 50 faz tempo e nunca pensou em tomar a pneumocócica? Está esperando o quê?
Não se vacinar é muito mais o que se expor a risco, é expor toda a sociedade. Sempre, em qualquer situação, 5% da população, por algum motivo, não pode ser vacinada: ou porque ainda é bebê, ou porque é idosa, está doente, tem imunossupressão ou porque é alérgica a algum componente da vacina. Por isso, os outros 95% da população têm de ser imunizados, não só para a própria proteção, mas para impedir que vírus e bactérias circulem e atinjam os mais vulneráveis, aqueles 5%.
Agora, aproveita se você tem menos de 49 anos – e mais de 12 meses – e passa na UBS para tomar vacina contra o sarampo. Já que está por lá, confira como está a vacina contra tétano, tome a de amarela, e vamos todos dormir um pouco mais sossegados.
Fonte:
revista questão de ciência